DESABAFO DE LEONARDO PAIXÃO RENDE CAPA NA FOLHA DE S. PAULO

21 de fevereiro de 2018 – 21:04

O quiproquó de um grupo no Facebook chamado “Restaurantes de Belo Horizonte” foi parar na capa do caderno Ilustrada do jornal Folha de S. Paulo nesta quarta (21). Naquela página da rede social é comum encontrar comentários, elogios e críticas de clientes a estabelecimentos gastronômicos da capital mineira. Desta vez, o que chamou a atenção foi o próprio chef e proprietário do restaurante responder à uma crítica feita ao preço de um dos pratos servidos na casa: papada de porco com mil-folhas de mandioca, acelga e molho de laranja por R$74. O caso aqui trata-se do premiado chef de gastronomia contemporânea e dono do restaurante Glouton, Leonardo Paixão. Conhecido por fazer receitas finamente elaboradas com ingredientes da culinária mineira, o médico que abandonou uma carreira financeira segura na área de saúde, abriu as contas de quanto gasta para manter o sonho da sua verdadeira vocação com as portas abertas. A sinceridade da carta de Paixão, publicada em 2 de fevereiro, e que devassou o seu negócio para o mundo na internet, surpreendeu e virou notícia na cidade até chamando a atenção da mídia nacional.

A matéria de capa ainda destacou as fortes opiniões do chef sobre discordar de um “comunismo gastronômico” e na super valorização de ingredientes para precificar um prato. Na entrevista, Paixão explica sua preferência por matérias-prima menos sofisticadas: “Não sou da linha da cenoura plantada ao som de música clássica por uma velhinha que lhe faz carinho. A valorização demasiada do produto gera certa mediocridade na cozinha, ele aparece como uma muleta”. 

Quer entender por que um prato pode sair tão mais caro que a sua matéria prima, neste caso, R$6,50 o quilo da peça? Leia abaixo a carta publicada pelo chef, que conta o suor de se levar um empreendimento gastronômico de destaque no país:

 

“Resposta ao texto “PAPO RETO: A PAPADA PRECIOSA” por Hanna Litwinski.

Gostaria de começar o texto agradecendo ao enorme carinho dos nossos queridos conterrâneos. Fiquei emocionado com a quantidade de gente que nos apoiou nos comentários. Fico muito feliz que exista tanta gente que valoriza, respeita e aprecia a gastronomia. Isso me deixa muito inspirado para continuar na luta. Tenho muito carinho por vocês que compartilham comigo essa paixão pela culinária.

Recentemente foi escrito um texto que me cita e cita meu restaurante, Glouton, como exemplo de cobranças abusivas por ingredientes baratos “gourmetizados”. Disse também que “Falta informação, falta cultura e por vezes sinto falta de um pouco mais de honestidade.”

Acho muito fortes insinuações de desonestidade direcionadas aos empresários do setor de restaurantes, um dos mais difíceis do mercado.

Apesar de ter dito no texto que entende bem os custos envolvidos em um restaurante, vou fazer uma continha aqui e dar um pouco mais dessa informação.

Nosso gasto mensal com água, luz, gás, aluguel, telefone, alarme, limpeza de fossa, lavanderia, controle de pragas, contador, recolhimento de lixo e manutenção em geral (equipamentos, jardinagem, limpeza de calhas, quebra de pratos, taças, perdas de talheres e etc) é aproximadamente 70.000.

Nosso gasto com salários, transporte de funcionários e gratificações é aproximadamente 135.000.

Nosso gasto mensal com impostos em geral (somos uma média empresa) é 95.000 reais.

Nosso gasto mensal com produtos em geral: insumos e bebidas é em torno de 160.000

Atendemos uma média de 4000 clientes por mês. Sendo assim nosso gasto por cliente atendido é 115 reais, sendo que desse valor 40 reais é o custo de produtos aproximado. Vale frizar que sempre a margem direta sobre as bebidas é pelo menos 4 vezes menor que sobre alimentos, uma vez que custa muito mais caro para se preparar um prato que servir uma bebida.

Dessa forma nosso custo de matéria prima vendida, ou CMV, é 34,7% de nossos gastos. Daí você pode ver como o Glouton é um restaurante bem administrado. Poucos conseguem manter um CMV destes, próximo a 33,33%, que é considerado o ideal para uma administração saudável.

Trocando em miúdos, do custo dessa papada pra mim, somente 1/3 foi de ingrediente.

Fazendo essa continha perversa por cliente e analisando os números de forma fria, se um casal vem aqui com Chef’s Club e o consumo fica em 250 reais (duas papadas e um vinho de 102, água gratuita), você paga 205,60 (44,4 reais de desconto). Essa conta é 24,4 reais mais baixo que o simples custo médio de dois clientes na casa seja, “alguém pagou sua conta.”

Respondo à pergunta:

“Será que a gente tem um prazer sórdido em ser feito de trouxa?” Na realidade acho difícil isso acontecer na gastronomia. Manter um restaurante com os custos altíssimos e a pequena margem de lucro é tão difícil que, segundo a ABRASEL 70% das casas abertas no Brasil fecham antes de completar 5 anos. Se fosse esse negócio da China, a história seria bem diferente.

E respondo especialmente à essa, muito obrigado por me dar a chance:

“Porque transformar coisas simples, acessíveis e que são absolutamente maravilhosas por isso mesmo, em produtos de boutique?” Ora, essa é a essência da gastronomia e o real sentido da minha vida. Isso é meu sonho, de transformar o ordinário em extraordinário! É duro, é árduo e muitas vezes vai contra muita gente, mas é a poesia da minha existência. E citando também Rachel de Queiroz:

“A vida sem sonhos é muitíssimo mais fácil. Sonhar custa caro. E não digo só em moeda corrente do País, mas daquilo que forma a própria substância dos sonhos”.

Agora, pensando na papada, eu não pago 8,90 no quilo, pago 6,50. Ela gera uma perda de 70% no processo de limpeza e desengorduramento e mais uma perda no forno. Segundo nossos cálculos, cada quilo de papada nos da 1 porção. Servimos aproximadamente 160 papadas por semana. Ela precisa de duas funcionarias qualificadas durante meio horário para a limpeza, mais tempo de outros dois funcionários para grelhar. Gastamos muito suco de laranja espremida na hora, caldo de carne feito no Glouton com mocotó e carne moída. Esse caldo leva dois dias para ficar pronto, gasta energia de 5 horas de forno para cozinhar a carne, mais 12 horas cozinhando, mais 6 horas reduzindo. No dia seguinte uma funcionaria escorre a papada e enrola ela durante meio horário. Outro funcionário pega os caldos e faz o molho, que leva 6 horas para reduzir e vários temperos. A guarnição de mil folhas de mandioca gasta 2 quilos de manteiga e sete de mandioca por tabuleiro, um tabuleiro da 36 porções, gasta o dia inteiro de duas funcionarias para laminar e intercalar as mandiocas, depois 7 horas de forno durante a noite. Depois resfria por 24 horas e é porcionada por outro funcionário, grelhada e finalizada. Os pasteizinhos de batata doce são feitos com recheio de puré de batata e massa de guioza que custa caro. A acelga é selecionada, aparada e lavada por outro funcionário. O prato é servido em uma louça artesanal super frágil que custa 110 reais por prato e possui razoável quebra, que entra no custo de manutenção. Se colocar tudo no papel, ela é mais cara que o atum que, apesar de custar 89 reais o quilo, não gasta equipamento, mão de obra ou tempo de preparo.

Dando um pouco mais de informação, carnes de porco não são divididas entre carne de primeira e carne de segunda. O critério para dividir as carnes é a dureza: carnes de primeira são naturalmente macias e carnes de segunda são, por definição, mais duras e precisam ser amaciadas pela cocção para serem comidas. É uma nomenclatura besta, mesmo porque uma rabada, por exemplo, tem tanta perda em osso que fica mais cara por quilo que um filé mignon.

Eu realmente acredito na gastronomia, acredito na magia da boa experiência em um restaurante, que inclui desde a decoração, climatização, ambiente, serviço, bebidas e comidas. Acho que é das coisas mais extraordinárias da vida, alimenta o corpo e a alma, um lugar para ser feliz com a família, amigos e pessoas que ama. Faço isso com muito carinho e tomo extremo cuidado para cobrar o preço mais justo possível por isso.

Abraços,

Leo Paixão

Chef, proprietário Restaurante Glouton.”

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